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O caminho é belo para quem caminha

No Blog AdC desta semana trazemos uma reflexão muito especial escrita por Sumito Estevez, chef de cozinha venezuelano, a partir da sua experiência com o projeto “ProtagonizAqui” realizado pela AdC em parceria com a Inter-American Foudation (IAF), Missão Paz e Casa Venezuela. Ele comenta como o projeto mudou o seu olhar sobre a própria profissão.

Leia mais abaixo!

Por Sumito Estevez

Se uma pessoa olha para o rosto de Cristo, se olha para o rosto de outro que ama, tudo nele volta ao seu lugar, tudo corre para o seu lugar .


Sumito, equipe AdC e alguns participantes do projeto no evento de lançamento do e-book.

No primeiro semestre de 2022 a Associação Brasileira Aventura de Construir (https://aventuradeconstruir.org.br) convidou-me para ir a São Paulo fazer parte da etapa gastronômica de um projeto de formação de longa duração denominado “ProtagonizAqui”. Foi um projeto profundamente ambicioso que procurou acelerar tanto o caminho do trabalho como o do empreendedorismo para refugiados e pessoas em condições de elevada vulnerabilidade. Durante vários meses trabalhamos para lhes dar formação (minha participação foi exclusivamente na área da educação gastronômica), e no dia 4 de setembro desembarquei em São Paulo naquela que seria a primeira visita a participar presencialmente. Oito dias depois, minha vida havia mudado. E não é um eufemismo poético dizer que mudei, desde então vejo meus métodos de trabalho com outro olhar.

Já participei de muitos projetos onde a gastronomia é um veículo de emancipação e liberdade. Vi como a panela e o fogo podem mudar a vida de uma família e ter um grande impacto social no meio ambiente. É, pode-se dizer, minha obsessão. Mas também aprendi a ficar cético porque honestamente são cada vez mais as vezes que vejo que ações, com alguma impotência, com muito boas intenções (e recursos) se desvanecem numa bruma opaca, seja por falta de método (que ameaça a continuidade), seja por falta de disciplina financeira (quase sempre traduzida em burocracia), seja por alienação de ideologias onde os preconceitos sociológicos conquistam os sonhos e as certezas daqueles a quem se quer ajudar. Aceitar a liberdade da pessoa que está sendo ajudada pode parecer sem critério.

O que vou contar é uma crônica, mas também uma homenagem a uma equipe de trabalho que não só acredita no bem comum, como também percorre com rigor o belo caminho onde se planejam projetos de impacto social para que cheguem ao futuro através de um método replicável e verificável no presente.

O que é um refugiado?

Nas décadas em que trabalhei de uma forma ou de outra com populações com algum grau de vulnerabilidade, nunca o tinha feito para “refugiados”. Já o fiz com mães solteiras, com pessoas com poucos recursos, com migrantes, com pessoas com pouco acesso à educação formal, com pessoas cognitivamente diferentes, para grupos sem acesso ao mínimo de calorias diárias para alimentação… Porém, nunca em um plano de trabalho tinha lido a palavra “refugiado”.

Embora o grupo com o qual trabalhei não fosse exclusivamente de refugiados venezuelanos, a palavra carregava peso. Por mais que isso possa pesar para um venezuelano que viu os milhões de venezuelanos que buscaram refúgio em outros países após dias exaustivos a pé pelas fronteiras chamados “imigrantes” (https://www.acnur.org/situacion-en-venezuela .html) no que, citando o ACNUR, é “a segunda maior crise de deslocamento externo do mundo”.

Formalmente, do ponto de vista político, refugiado é aquele que não pode retornar ao seu país de origem por ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade ou pertença a grupos sociais (Convenção da ONU para Refugiados de 1951). A avó que conheci nessas oficinas que caminhava com o neto pela selva amazônica para descobrir, depois de semanas, ao chegar à fronteira com a Colômbia, que havia feito o caminho errado e teve que refazer o caminho para recomeçar em direção ao Brasil, não é formalmente um refugiado, onde procurou encontrar seu filho. Ela fugia da fome, fugia da falta de futuro para o neto, mas legalmente não é refugiada, embora duas necessidades iguais pese sobre ela e o neto: segurança e proteção.

O fato da Associação Aventura de Construir ousar falar de refugiados num mundo que desumaniza a precariedade da fuga com a palavra imigração, não é um ato menor. Embora os grupos com os quais trabalhei fossem de várias nacionalidades (nem todos refugiados) e de múltiplas origens profissionais (engenheiros, educadores, policiais, empresários, comerciantes etc.), todos sem exceção precisavam reconstruir suas vidas com base no carinho de alguém que vê em todos a mesma humanidade.

Mais tarde falarei sobre a importância dos métodos, mas desde o primeiro dia entendi que parte do método é que o espaço onde você vai trabalhar deve ser claramente um espaço de afeto e refúgio para professores e alunos. Fortalecer alguém que se sente vulnerável envolve aprender a olhá-lo nos olhos e dizer-lhe com seus olhos e ações “você e eu somos iguais. Agora você precisa de mim e com certeza em algum momento serei eu quem vai precisar de você. Você e eu somos iguais.” E acredite, passar do olhar assistencialista para esse tipo de olhar requer treinamento.

É uma barreira linguística?

A linguagem como ponte foi outra grande lição que tirei desse projeto. Com exceção das pessoas do Haiti, o resto dos meus alunos eram de países de língua espanhola (principalmente Venezuela, mas também Colômbia, Equador, Peru e Bolívia); então minhas aulas eram em espanhol e voltadas para pessoas que estavam começando a falar português. Os meus workshops foram tanto práticos como teóricos, e deles deveria nascer o componente gastronômico de futuros planos de negócios que concorrem à capital semente.

Eu vi como uma barreira muito grande ter que treinar pessoas para defender projetos de negócios sem que eles falassem o idioma local, então apelei para dois fatores que me precedem: uma conferência que ouvi na cidade de Rimini em 2017 e uma busca pela verdades da observação, onde é o objeto que mostra a realidade.

A conferência do “Meeting di Rimini” ( https://www.meetingrimini.org) a que me refiro foi ouvida pelo egípcio Wael Farouq e nela contava os exercícios gastronômicos que um grupo de acadêmicos fazia com jovens muçulmanos europeus. Eles contaram como quando alguém sente que não pertence a nada, é fácil para o grupo errado dar a eles esse sentimento de pertencimento. É assim que surgem as gangues ou grupos terroristas. Um dos exercícios que eles fizeram, foi pedir a essas crianças que perguntassem aos pais qual era o prato favorito da infância. Ninguém é capaz de falar do prato da sua infância sem falar da sua infância, das suas paisagens, dos seus costumes. E assim, pouco a pouco, a partir de uma emotividade específica, foi-se construindo um diálogo com sentido de pertença entre pais e filhos. Quando você tem orgulho da sua cultura e do seu passado, fica mais difícil a sua cultura ser a da gangue, simples assim.

O que fizemos foi primeiro pedir que apagassem da cabeça o cardápio do restaurante com que já sonhavam ou o produto que já planejavam vender. Que saiam primeiro à rua para conversar (através de exercícios específicos que lhes demos) com quem vende hortaliças no seu bairro, para perguntar aos vizinhos sobre os seus costumes, para ter curiosidade pelo desconhecido, para perceber as oportunidades, para pensar pessoas com quem estabelecer vínculos, associações e convênios; e com essa informação em mãos se eles olhassem para dentro de si e de sua própria cultura, só assim construíram um modelo de negócios juntos.

A segunda tarefa, o culminar do meu período de ensino, era que tivessem de servir os pratos que aprenderam à mesa para cerca de 20 pessoas, sonhando que tinham sido contratados no Brasil para um serviço de catering. Eles tinham que explicar os pratos aos comensais em português (estamos falando de pessoas que estavam começando a aprender o idioma!) seduzindo-os com suas histórias de infância e por que achavam que esses pratos seriam apreciados no Brasil. Simplesmente que eles se sentiam embaixadores em um país onde, por gratidão, tinham que fazer coisas que também agradassem aos brasileiros, e fossem comerciais… e para isso era preciso primeiro entender o Brasil e saber dizer seu próprio passado.

Nós choramos. Sei que esta crônica tenta explicar a importância quase asséptica de um método replicável, mas choramos. Quando ouvíamos aquelas histórias tão carregadas de passados dolorosos, saudades amorosas e esperanças no futuro, eles choravam quando falavam e nós chorávamos quando ouvíamos.

Devemos todos ser empreendedores?

Tenho um pouco de medo da palavra empreendedorismo porque acabou por se tornar o reflexo dominante de uma cultura de “vencedores” e “perdedores” onde parece que quem empreende é um vencedor e quem procura emprego é um perdedor.

Ser empresário gastronômico (ou seja, gerar emprego ou pelo menos autoemprego) é uma natureza que envolve desde coisas tão prosaicas e cotidianas, como não ter vergonha de cobrar ou demitir alguém, passando por um impulso vital onde a adrenalina de ter compromissos e as dívidas não são um peso insuportável, até que nos reconciliamos com uma natureza que nos impulsione a navegar levados pelos ventos mutáveis ​​da vida cotidiana. Ao afirmar que é uma natureza, o que estou afirmando é que nem todos nós nascemos com essas características… e ainda bem que assim é.

Quase todas as associações e fundações com as quais trabalhei tendem a ver o empreendedorismo sob esses paradigmas, muitas vezes esquecendo que construímos a civilização moderna a partir da sistematização dos ofícios. Do emprego.

Algo marcante no trabalho realizado com a Aventura de Construir no Brasil foi justamente sentir que por trás de todo o programa havia um método que, ao conferir dignidade ao indivíduo, via o valor de educar para o trabalho e o empreendedorismo de igual para igual.

Recentemente li um editorial no site da Associação Trabajo y Persona Civil (https://trabajoypersona.org , aliada da Venezuela em projetos sociais e especificamente os da Aventura de Construir), trecho que cito textualmente: “O que é pessoa? Uma das mais belas definições foi dita por Luigi Giussani, que afirma que a pessoa é uma relação com o infinito, que possui em seu coração um desejo infinito de verdade, justiça e beleza. Por isso, o trabalho é um lugar diário e privilegiado para expressar esse desejo de realização

Visão linda de trabalho! Visto assim, você pode ser chef ou dono de restaurante, mas em todo caso entendendo que fazemos parte de um mesmo todo que olha para o infinito com os mesmos desejos.

O coração é suficiente?

A resposta é simples. Não.

Para que um projeto de inserção de comunidades vulneráveis ​​tenha real significado ele deve, por um lado, educar e modificar efetivamente as pessoas e seu ambiente, mas também deve poder ser repetido com outros grupos que virão, ser capaz de monitorar resultados, inspirar para que outras associações adaptem experiências bem-sucedidas em outros lugares, perdurar no tempo, aprender a se financiar, saber quais alianças são necessárias e um longo etc.

As duas palavras-chave por trás de tudo isso são Método e Documentação.

O Método é aquele que resume em si a filosofia por trás da busca. É aquela que estabelece as formas de abordagem, aquela que ensina que da liberdade surgem as provocações que se deve verificar e ensina como vê-la. O Método faz com que uma equipe de pessoas caminhe na mesma direção, é aquele que nota o valor de provocar a comunhão entre os participantes através de projetos associativos e ensina a olhar nos olhos do outro, é aquele que molda um estudo e até mesmo um cronograma.

A documentação possibilita, e a generosidade de compartilhar o que está documentado torna-se replicável, e a Associação Aventura de Construir com quem fiz o trabalho no Brasil não dá um passo sem escrever e, principalmente, sem seguir com disciplina os passos provenientes desses escritos.

Vamos aprender a cozinhar juntos?

Convido você a baixar o e-book “Protagoniza Na Cozinha” no link https://bit.ly/ProtagonizaCozinha onde você poderá ver um pouco do escopo do projeto.

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